A prova e a metáfora da incerteza

Política novembro 2025

Principais insights desta análise.

Há quem veja no ENEM apenas um exame, uma engrenagem burocrática de entrada nas instituições de ensino superior (IES). Mas há quem perceba, sob a frieza das notas e percentuais, a coreografia da nossa crença moderna na exatidão, a certeza na régua e no compasso, um instrumento de que a obtenção do conhecimento pode ser medido com o rigor de um termômetro. O debate recente sobre o Sistema de Seleção Unificado (Sisu), que agora aceita as notas dos três últimas edições do ENEM, reacende uma velha pergunta: pode uma prova ser comparada com outra?

Em tese, sim. A Matemática e a Estatística dizem que pode. A tal Teoria de Resposta ao Item (TRI), essa deusa de laboratório que equilibra equações para tentar exprimir justiça, promete corrigir algumas imperfeições humanas. A TRI, com suas fórmulas e probabilidades, assegura-nos que, mesmo com questões diferentes, a balança não se desequilibra, conforme pontua Thiago Valentim, professor do Instituto Federal do Rio Grande do Norte e sócio do Insppe, em reportagem do jornal O Globo: “Fiquei emocionado com os resultados das análises das notas. Os candidatos têm notas similares ano a ano, do ponto de vista estatístico. Então há de fato uma possibilidade de comparação, que é a grande vantagem da TRI, entre as edições” (análises no gráfico a seguir).

O Brasil é um país afeito ao improviso e parece sempre ter um desnível escondido sob o tapete dos números. Vejam o que revelam os gráficos: num ano, a nota sobe; no outro, cai. Em 2023, por exemplo, a média dos candidatos voou mais alto; em 2024, já perdeu altitude. Não há escândalo nisso, apenas o retrato de um país que tenta traduzir a complexidade da vida em planilhas. A cada edição, o ENEM muda de pele como uma serpente inquieta, e o estudante é quem paga o preço da metamorfose. Ele é, porém, coerente, suas variações são pequenas, tudo é controlado, embora o candidato que enfrentou uma redação inspirada na solidão digital não sinta o mesmo peso daquele que escreveu sobre a invisibilidade feminina. Cada tema, cada texto, cada enunciado carrega o espírito do tempo, e o tempo, sabemos, é a mais instável das medidas.

A controvérsia sobre a equivalência das provas talvez diga menos sobre o ENEM e mais sobre nós. Temos o velho desejo de acreditar que há justiça nas estatísticas, que a média é um abrigo seguro contra o acaso. E não é. Ela reflete aquilo que é, a realidade que por vezes tentamos esconder. Queremos que a nota 700 de 2022 seja igual à de 2024, como se a esperança estudantil pudesse ser congelada num gráfico. Mas a verdade, quase poética, é que toda prova é uma metáfora do país que a escreve. O ENEM é o espelho do Brasil: ambicioso, desigual, cheio de boas intenções e más execuções. Mede-se o aluno, mas o que se revela é o sistema. E, talvez, no fundo, o que nos angustia não é a comparação entre provas, mas entre gerações, entre o que fomos e o que restamos.

Em tempos de algoritmos e tabelas, ainda buscamos o mesmo consolo antigo: acreditar que o número expressa neutralidade. Como se o 800 em Matemática redimisse o caos das escolas públicas, ou o 900 em Redação compensasse o silêncio das bibliotecas vazias. O ENEM muda, o Sisu muda, os cálculos mudam, só não muda o país que, há séculos, transforma desigualdade em estatística. Os números apenas dizem o que está escondido sob a aparência.

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