Há quem veja no ENEM apenas um exame, uma engrenagem burocrática de entrada nas instituições de ensino superior (IES). Mas há quem perceba, sob a frieza das notas e percentuais, a coreografia da nossa crença moderna na exatidão, a certeza na régua e no compasso, um instrumento de que a obtenção do conhecimento pode ser medido com o rigor de um termômetro. O debate recente sobre o Sistema de Seleção Unificado (Sisu), que agora aceita as notas dos três últimas edições do ENEM, reacende uma velha pergunta: pode uma prova ser comparada com outra?
Em tese, sim. A Matemática e a Estatística dizem que pode. A tal Teoria de Resposta ao Item (TRI), essa deusa de laboratório que equilibra equações para tentar exprimir justiça, promete corrigir algumas imperfeições humanas. A TRI, com suas fórmulas e probabilidades, assegura-nos que, mesmo com questões diferentes, a balança não se desequilibra, conforme pontua Thiago Valentim, professor do Instituto Federal do Rio Grande do Norte e sócio do Insppe, em reportagem do jornal O Globo: “Fiquei emocionado com os resultados das análises das notas. Os candidatos têm notas similares ano a ano, do ponto de vista estatístico. Então há de fato uma possibilidade de comparação, que é a grande vantagem da TRI, entre as edições” (análises no gráfico a seguir).

O Brasil é um país afeito ao improviso e parece sempre ter um desnível escondido sob o tapete dos números. Vejam o que revelam os gráficos: num ano, a nota sobe; no outro, cai. Em 2023, por exemplo, a média dos candidatos voou mais alto; em 2024, já perdeu altitude. Não há escândalo nisso, apenas o retrato de um país que tenta traduzir a complexidade da vida em planilhas. A cada edição, o ENEM muda de pele como uma serpente inquieta, e o estudante é quem paga o preço da metamorfose. Ele é, porém, coerente, suas variações são pequenas, tudo é controlado, embora o candidato que enfrentou uma redação inspirada na solidão digital não sinta o mesmo peso daquele que escreveu sobre a invisibilidade feminina. Cada tema, cada texto, cada enunciado carrega o espírito do tempo, e o tempo, sabemos, é a mais instável das medidas.
A controvérsia sobre a equivalência das provas talvez diga menos sobre o ENEM e mais sobre nós. Temos o velho desejo de acreditar que há justiça nas estatísticas, que a média é um abrigo seguro contra o acaso. E não é. Ela reflete aquilo que é, a realidade que por vezes tentamos esconder. Queremos que a nota 700 de 2022 seja igual à de 2024, como se a esperança estudantil pudesse ser congelada num gráfico. Mas a verdade, quase poética, é que toda prova é uma metáfora do país que a escreve. O ENEM é o espelho do Brasil: ambicioso, desigual, cheio de boas intenções e más execuções. Mede-se o aluno, mas o que se revela é o sistema. E, talvez, no fundo, o que nos angustia não é a comparação entre provas, mas entre gerações, entre o que fomos e o que restamos.
Em tempos de algoritmos e tabelas, ainda buscamos o mesmo consolo antigo: acreditar que o número expressa neutralidade. Como se o 800 em Matemática redimisse o caos das escolas públicas, ou o 900 em Redação compensasse o silêncio das bibliotecas vazias. O ENEM muda, o Sisu muda, os cálculos mudam, só não muda o país que, há séculos, transforma desigualdade em estatística. Os números apenas dizem o que está escondido sob a aparência.